Eu sabia que isso ia acontecer outra vez. Eu tinha certeza de que mais cedo ou mais tarde essa coisa acordaria dentro de mim, me fazendo repensar cada escolha feita nos últimos anos. Eu podia sentir o cheiro do medo que emanava da minha carne vacilante toda vez que eu realizava mecanicamente as mesmas coisas. Dentro de mim, um coelho de cartola com um relógio na mão gritava: VOCÊ ESTÁ ATRASADA!
Eu não podia dar mais nenhum passo sem arrastar uma corrente de duzentos quilos presa ao meu calcanhar, e a cada esquina dobrada aumentava em mim a certeza de ter me tornado forasteira em minha própria vida.
Eu procurava cumplicidade entre os meus amigos, mas, em geral, estávamos perdidos e sonolentos demais, incapazes de acariciar com as mãos, vigorosamente, um coração que não fosse o nosso. Então, eu tropeçava e via o filete de sangue escorrer pelo meu joelho, do mesmo jeito de quando eu era criança. O sangue ficava preto e depois endurecia. Às vezes, chegava a feder. Mas era preciso continuar. De alguma forma, era preciso continuar até que na pele não restasse nada além de pequenas casquinhas de sangue, vestígios de uma dor que não existia mais. Só que eu não podia ir além. Eu sabia que perder a esperança era o mesmo que perder a vida. E eu não tinha mais nada para esperar. Tudo estava devidamente consumado. Vasculhando minhas gavetas pessoais e fazendo minha contabilidade sentimental, constatava que para mim não havia restado quase nada.
Tudo bem. Vai ver que “nada” era exatamente o que eu merecia. Mas, não de mim. De mim, eu merecia uma segunda chance. Uma chance de gozar outra vez. De sentir entre as pernas esse membro grosso e fálico, num movimento gostoso de vai e vem, que é a vida; que é o tesão de viver administrado em doses cavalares de energia criativa, confiança e desejo mútuo.
Eu merecia encontrar uma pessoa, qualquer uma no mundo, que tivesse a sensibilidade e a coragem de me enxergar em mim novamente. De me ver aqui, como eu sou, sem a lente do tédio e do desinteresse.
Então, eu larguei essa porra toda pra trás outra vez, todas essas falsas seguranças disfarçadas de necessidade. Recolhi os 5 ml de coragem que pingaram gota a gota nos últimos anos e me piquei. Depois, as veias saltadas, revelando o efeito desejado e a certeza de que eu precisava partir.
Dessa vez, não houve nenhuma comoção interior nem a sensação de estar fazendo a coisa certa. Tudo bem. Quando você fica velho, você não precisa fazer a coisa certa. Você só precisa fazer alguma coisa.
Um comentário:
E é sempre preciso fazer alguma coisa. Se certa ou não, bom quem poderá dizer se é certo ou se é errado? Se é que existe mesmo isso... creio que o errado é o não fazer, de resto vamo que vamo, que pra algum lugar a gente tem que ir!!
Bom ler vc!
Postar um comentário