Eu sabia que isso ia acontecer. Eu tinha certeza de que um dia isso ia irremediavelmente acontecer; eu sabia que essa bomba ia estourar dentro de mim. Eu tava cansada de fazer as mesmas coisas. Não que eu não goste de rotina. Eu gosto pra caralho de rotina. Só que eu gosto da rotina que existe apenas nos meus planos.
E eu era uma garota de 22 anos fazendo MUITOS planos. Eu queria ver os índios. Eu queria molhar os pés nos rios. Eu queria tomar os cafés amargos e fumar os tabacos fortes. Eu queria ouvir a Rita Lee e os Mutantes, saber quem era o Sérgio Sampaio, ler o Neruda...
Eu queria conhecer os rituais xamânicos do Castañeda e invocar outros espíritos. Eu queria rezar para deuses de outras devoções e brincar de roda com eles. Eu queria tocar gaita “like a Bob Dylan” e ter uma voz rouca e matadoramente sensual como a da Janis Joplin.
Eu queria sentir o cheiro do sexo impregnado nos lençóis e a dor das paixões. No mínimo, eu desejava um romance estilo “Rimbaud e Verlaine”, “Sid e Nancy”, “Werther e Carlota”. Mas com final feliz, claro. (pausa para inflexão: não existe nenhum amor desse tipo com final feliz.)
Mas eu estava ali. E tudo o que eu tinha era uma mesa de 1m x 60cm e uma pilha de alguns quilos de papel para ler e revisar. Puta que o pariu. Eu tava fodida. Sem dinheiro, sem bufunfa, sem cascaio. Eu tava nua e com a mão no bolso.
Mas eu não podia continuar. Eu não podia sentar nem mais um dia naquela cadeira e fingir que o demônio não estava comprando a minha alma a preço de banana. Em relação aos meus sonhos, eu me sentia como Cronos, devorando e engolindo todos os meus filhos assim que eles nasciam. Eu precisava parar.
Então, naquele dia, eu reuni alguma coragem, essa característica que me falta ainda hoje para tudo na vida, e me alforriei. Pedi demissão. Eu tinha pouco, e daí? Mas eu ia correr mundo. Ia retirar a sela do cavalo bravo, obrigado a sentar com cauda e tudo naquela cadeira giratória fizesse sol ou fizesse chuva.
Não era nenhuma decisão importante para a humanidade. Não era sequer uma decisão importante para quem me conhecia, mas era o intervalo entre a sanidade e a loucura que eu tanto precisava. Era um pequeno comprimido de caos para quem havia feito tudo muito certinho até ali (segunda inflexão: não administre a primeira dose dessa droga perigosa. Depois dela, serão necessárias quantidades cada vez maiores. Sua vida nunca mais será suficientemente tranquila e segura sem parecer tediosa.). Era a mão da enfermeira desligando os aparelhos e me dando de presente um balão de oxigênio. Um, apenas. Um mimo até que as agruras do “capetalismo” me mostrassem novamente a boca cheia de dentes querendo morder minha bunda.
Sinceramente, não faço ideia de como dormi naquela noite. Não me lembro. Mas eu tenho certeza de que era a primeira vez em muito tempo que o meu desejo e o meu destino davam-se as mãos.
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